domingo, outubro 08, 2006

A escolha nada inocente das palavras

(por Marco Aurélio Weissheimer, na Agência Carta Maior)

A disputa política em períodos eleitorais e não eleitorais é, entre outras coisas, uma disputa pela palavra, uma disputa pelo significado das palavras. A hegemonia neoliberal das últimas décadas expressou-se de modo avassalador no terreno discursivo. Algumas palavras e expressões são usadas diariamente, vestidas com um manto de verdades supostamente inquestionáveis, como se descrevessem exatamente o que pretendem descrever. Descrevem mesmo? O economês é um terreno fértil desta disputa. A escolha das palavras nesta área, assim como ocorre também na política e na cultura, está longe de ser inocente. São sempre escolhas fardadas, fardadas para a guerra ideológica.

O que significam, por exemplo, expressões como "choque de gestão", "corte de gastos correntes", "melhorar o gasto público", "o governo gasta muito e gasta mal", "redução das despesas do governo", "redução das despesas com pessoal"? Nos últimos anos, tais expressões tomaram o lugar de outras que tiveram livre e entusiasmado trânsito na década de 90. Expressões como "estado mínimo", "privatização", "livre jogo dos mercados", "globalização". As derrotas políticas e econômicas que a vida real infringiu a tais expressões e seus respectivos significados obrigaram seus formuladores a realizar uma maquiagem conceitual. Assim, hoje, esses agentes políticos e econômicos não falam mais abertamente de privatizações e da suposta eficácia do estado mínimo, mas sim de choque de gestão, da necessidade de reduzir os gastos do governo. O que mudou, afinal de contas?

A lógica da máscara
Há fortes indícios para se pensar que o que mudou foram apenas as palavras, a casca. As idéias permanecem as mesmas, só que com uma roupagem diferente. Um dos principais indícios dessa metamorfose é o esforço para ocultar o que elas de fato significam. A lógica desse esforço é a lógica da máscara, do disfarce. O atual momento político do país fornece fartos exemplos. Por que a preferência, por exemplo, pelo uso da palavra "gasto" ao invés do uso de "investimento". Alguém aí já viu um candidato propondo a diminuição de investimentos públicos? Já o "corte de gastos" é moeda corrente, sendo apontada como índice de modernidade e do caminho a ser seguido. Onde terminam, afinal, os gastos e começam os investimentos? Qual a fronteira entre esses dois termos em um país com as desigualdades sociais como as que o Brasil apresenta? Quando vamos ao supermercado (aqueles que conseguem ir, é claro) comprar café, arroz, feijão, alface e iogurte, isso é gasto ou investimento? Comprar livros é gasto ou investimento? E ir ao cinema?

Aqueles que falam em "cortar os gastos públicos correntes" costumam, quando chegam a governos, cortar investimentos em educação, saúde e assistência social. Façamos uma rápida comparação entre os últimos governos do Brasil. O principal símbolo do governo Fernando Henrique Cardoso foi a privatização. Essa política, segundo apregoavam suas lideranças, era fundamental para inserir o país na modernidade. O resultado é bem conhecido de todos e resultou na derrota dos tucanos e de seus aliados nas eleições de 2002. Já no caso do governo Lula, há um razoável consenso de que a principal marca (ou uma das) é o Bolsa Família. O que vemos hoje na disputa política e eleitoral? O candidato Geraldo Alckmin, herdeiro do governo FHC, diz que vai "manter e ampliar o Bolsa Família", mas faz isso por absoluta impossibilidade política de se contrapor ao programa. O principal conceito de sua campanha, na verdade, é o famoso "choque de gestão", expressão que costuma andar de mãos dadas com "corte de gastos públicos correntes". Quais gastos públicos serão cortados para fornecer a eletricidade do "choque de gestão"?

A teoria do bolo
O candidato tucano não fala sobre onde vai cortar para aplicar seu "choque de gestão", mas um dos formuladores de seu programa de governo rompe o silêncio. Em entrevista à Folha de São Paulo (14/08/2006), o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações o governo FHC, afirmou: "Hoje, nós estamos tirando renda da parte eficiente da economia e dando para o governo para distribuir isso para o sujeito comer. Isso é muito bom do ponto de vista da distribuição de renda, mas do ponto de vista de uma economia de mercado é o pior caminho que você tem". Trata-se de uma variante da teoria do bolo, popularizada por Delfim Netto. Ou seja, é preciso investir (e, neste caso, jamais se usa a palavra "gasto"; dinheiro para pobre é gasto, dinheiro para rico é investimento) na "parte eficiente da economia", fazer o bolo crescer e todos ganharão com isso. Programas como o Bolsa Família, nesta concepção, são muito bons "para o sujeito comer" e "do ponto de vista da distribuição de renda", mas para a economia de mercado são péssimos. Para que serve a "economia de mercado", afinal? Para o economista tucano, parece que não é para melhorar a distribuição de renda no país. Há uma certa dose de sinceridade aí que não aparece nos discursos eleitorais.

Nunca é demais lembrar alguns números sobre o quadro da desigualdade social no Brasil. Os 10% mais ricos da população são donos de 46% da renda nacional, enquanto que os 50% mais pobres (cerca de 87 milhões de pessoas) ficam com apenas 13,3% do total da renda nacional. Países com renda per capita similar à brasileira têm 10% de pobres em sua população, enquanto nós estamos na casa dos 30%. Segundo dados oficiais, cerca de 55 milhões de brasileiros vivem em situação de pobreza. Destes, cerca de 22 milhões em condição de indigência. Por outro lado, o Brasil possui a segunda maior frota de aviões e helicópteros particulares do mundo, um número que expressa seguramente, para Mendonça de Barros, a "parte eficiente da economia". Essa "parte eficiente" fez com que o Brasil tivesse uma das maiores taxas médias de crescimento ao longo do século XX e, ao mesmo tempo, criasse uma das sociedades mais desiguais do planeta. Trata-se, sem dúvida, de um modelo chocante de gestão econômica.

O oculto e o visível
O que a "parte eficiente da economia", essa que anda em aviões e helicópteros particulares, tem a oferecer para os 22 milhões de brasileiros que vivem em situação de indigência (para não falar dos outros 30 milhões que vivem na linha da pobreza)? Tem algo "para o sujeito comer"? Um bom texto para refletir sobre essa pergunta é o livro "Vidas despedaçadas" (Jorge Zahar), do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Segundo ele, hoje há uma população de milhões de párias sociais em todo o mundo, que não tem o menor significado para a chamada "economia de mercado". "Essa população fora-da-lei jamais será incorporada ao sistema produtivo, nem manterá qualquer tipo de relação estável. Também não há mais espaço para onde fugir, nem para pensar no futuro. Essas pessoas não têm futuro". Para os defensores das virtudes inquestionáveis da "economia de mercado", destinar dinheiro público para essa gente é um gasto inútil e não um investimento.

Os critérios de uso das palavras "gasto" e "investimento" já são bons indicadores para desmascarar qualquer presunção de inocência. Outro bom indicador é o uso da lógica da máscara, do disfarce, para esconder o real significado daquilo que se está dizendo. Não é à toa que os candidatos tucanos se vejam obrigados hoje a dizer que vão manter e ampliar o Bolsa Família, enquanto seus formuladores de programa de governo criticam abertamente o programa. Não é à toa que, nas eleições municipais de 2004, em Porto Alegre, o candidato José Fogaça (ex-líder do governo FHC no Senado) tenha sido obrigado a repetir a exaustão que iria manter o Orçamento Participativo. Tampouco é à toa que, ainda no RS, a candidata tucana ao governo estadual, Yeda Crusius, seja obrigada a assumir um compromisso público prometendo que não vai privatizar. Para driblar essas interdições, adotam novas expressões como "choque de gestão" ou "novo jeito de governar".

A escolha dessas palavras - e o ocultamento de outras - não é nada inocente. Nunca é. Como diz Fredric Jameson, há uma luta do discurso sendo travada aí. Uma boa máxima para se orientar neste terreno discursivo pantanoso pode ser a seguinte: "diga-me o que está sendo obrigado a dizer e o que está sendo obrigado a esconder e te direi quem tu és".

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