“O programa não é assistencialista. Ele é um exercício de direito e provoca ações integradas”. É desta forma que Lúcia Modesto, diretora do Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) defende o Bolsa Família. O programa, que já ultrapassou a marca de 11 milhões de famílias atendidas, destinou 7,5 bilhões de reais no ano passado para as camadas mais pobres da população. Embora não haja uma pesquisa do ministério que meça o impacto do programa – a primeira deverá ser realizada ainda neste ano – , é possível dizer que houve avanços desde outubro de 2003, quando foi implantado.
O Bolsa Família está dividido em três eixos fundamentais: o alívio imediato à pobreza, o investimento nas gerações futuras por meio do acompanhamento das condicionalidades e o desenvolvimento das famílias com a inclusão produtiva. A diretora do Cadastro Único lembra que na prática a universalização de serviços básicos – como saúde, educação e saneamento básico, por exemplo – não é real. “As famílias mais pobres são mais vulneráveis e acabam tendo maior dificuldade de acesso a tudo isso. E o programa tem conseguido aproximar as pessoas desses serviços”. Ela destacou ainda que “houve melhora no padrão alimentar das famílias. E em geral, as crianças atendidas pelo Bolsa Família estão melhor no que diz respeito à nutrição, o que muitas vezes é uma questão crítica na primeira infância”, disse Lúcia.
A posição de Lúcia tem respaldo em pesquisa feita pelo próprio MDS na “Chamada Nutricional”, em 2005. Na pesquisa, 17 mil crianças de até cinco anos, da região do semi-árido nordestino, foram pesadas e medidas. Dentre as famílias pesquisadas, 35,3% declararam ser beneficiadas pelo Bolsa Família. O levantamento mostrou que 92% das crianças avaliadas faziam ao menos três refeições diárias e apenas 6,6% apresentaram quadro de desnutrição crônica.
Outro dado apontado pela pesquisa mostra que entre as crianças atendidas pelo Bolsa Família o déficit altura/idade é de 4,8%, índice que aumenta para 6,8% entre os que ainda não são beneficiadas pelo programa. No mesmo levantamento, concluiu-se que crianças de seis a 11 meses de idade, caso não fossem atendidas pelo programa, teriam mais de 60% de risco de apresentar desnutrição crônica. “Isso é importante pois a faixa etária até um ano de idade é uma etapa bastante delicada que, se tiver déficit nutricional, poderá comprometer as outras fases da criança”, afirmou Rômulo Paes, secretário de Avaliação e Gestão da Informação do MDS quando da divulgação da pesquisa.
Segue a mesma linha avaliação feita pela Universidade Federal Fluminense em março do ano passado. Segundo as informações colhidas pelo DataUFF, por meio de entrevistas com 4 mil beneficiados, 66,9% do total declararam que a alimentação melhorou depois que passaram a receber o benefício; 18,7% disseram ter melhorado muito; 14,2%, responderam que continua igual e apenas 0,2% disseram ter piorado.
Mudança real
Mais do que estatísticas, levantamentos como esses revelam a realidade de pessoas com nome e endereço. Uma delas, que não participou destas pesquisas, mas que exemplifica bem os resultados obtidos pelo Bolsa Família é Maria Cristina Goes Santos. Aos 37 anos, com três filhos, é moradora de uma favela situada na avenida Ulisses Guimarães, em Diadema, na Grande São Paulo. Cristina vive num pequeno barraco de madeira. Quando chove, pinga água e por vezes ela teme que possa haver deslizamentos, já que sua casa fica na parte superior de um barranco. Além dela e das crianças, moram na casa seu marido, a irmã dela e seus dois meninos. Ela tinha direito a 95 reais, o máximo que o programa oferece por pessoa. Mas, abriu mão de parte dele depois que o marido arrumou emprego como ajudante-geral. Hoje, Cristina recebe 45 reais.
“Fiz isso porque acho que as coisas não devem ser feitas na base da mentira”, diz, explicando que com o salário do marido, a família passou a receber acima do máximo exigido pelo programa. Cristina também foi uma das participantes dos cursos de capacitação do programa e aprendeu a fazer bijuterias e sabonetes, que a ajudam a sustentar a família. Enquanto termina um colar e cuida da filha menor, Jennifer, de dois anos, Cristina conta que fez o curso de sabonetes no final de 2005. “Foi o que me salvou no final do ano. Ganhei um dinheiro e graças a deus pudemos ter um Natal melhor”.
O caso de Cristina se encaixa no que Lúcia Modesto chama de “inclusão produtiva”. Conforme explicou a diretora do Cadastro Único do MDS, a pobreza tem características muito distintas e para cada região é pensada uma alternativa diferente. “A renda de uma família deriva de vários fatores. Não é só questão de ter ou não ter trabalho porque muitas vezes as famílias não têm perfil de empregabilidade. Há famílias que não têm escolaridade nenhuma, então, terão dificuldades de criar mecanismos de autodesenvolvimento”. Para ela, está aí um dos pontos cruciais do programa. “A pobreza tem diversas dimensões e acho que essa forma mais integrada de enxergar o problema – tanto do ponto de vista da forma como se vê a realidade das famílias, quanto do ponto de vista da união de diversos atores públicos – é o maior mérito e o maior desafio do Bolsa Família”.
Embora o programa não tenha ainda conseguido mudar estruturalmente o problema da desigualdade social no Brasil, há pontos bastante positivos que devem ser lembrados ao se abordar o benefício. No livro “Bolsa Família – avanços, limites e possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões de famílias no Brasil” (Perseu Abramo, 2006) o autor Marco Aurélio Weissheimer salienta que “no período entre 2001 e 2004, a renda dos 10% mais pobres subiu 23,3%, puxada pelos benefícios previdenciários vinculados ao salário mínimo e por programas sociais como o Bolsa Família”. Ele se refere à pesquisa feita pelo economista Marcelo Néri, da Fundação Getúlio Vargas.
Já o economista da Unicamp, Márcio Pochmann, em entrevista concedida à revista Terceiro Setor em 2006 afirmou que “há 25 anos temos tido baixo crescimento econômico, em torno de apenas 2% ao ano. Este governo é mais sensível à questão da pobreza, promovendo programas que amenizam, mas não superam a miséria no país. Deve haver uma política estratégica para fazer com que a população mais pobre deixe de depender dos programas de transferência de renda”.
Visão elitista
Lúcia Modesto refuta as teses de assistencialismo em torno do programa afirmando que “as elites no Brasil manifestam seu preconceito de várias maneiras. Argumentam que se deve investir apenas em educação, que é transformadora. Há uma série de suposições que a elite usa e que acabam definindo a linha de argumentação de cada um deles. O que temos dito é que não somos dogmáticos. Nossa única religião aqui é a do combate à pobreza nas suas mais variadas dimensões”. No mesmo sentido, Cristina, beneficiária do programa, diz que “existe muito preconceito dos ricos. Eles acham que a pessoa que ganha o Bolsa Família usa o dinheiro para beber, para fazer o que não deve, para não trabalhar. Eu, e outros que conheço e que recebem o dinheiro, gastamos com comida e material escolar”, relata Cristina.
Os números levantados pela UFF vão ao encontro do que a beneficiária diz com relação ao uso dos recursos. Entre os pesquisados atendidos, 76,4% disseram gastar o benefício com alimentação. Em segundo lugar, vêm os gastos com material escolar, que fica em 11%. Roupas/calçados e remédios vêm em seguida, com 5,4% e 1,5%, respectivamente.
Também contrariando a visão de que o programa poderia não atingir o público ao qual se destinaria, a medição feita pela UFF mostra que dentre os beneficiários entrevistados, 65% são negros e pardos. Segundo avaliação dos pesquisadores, publicada por Weissheimer, “estes resultados apontam já de início para o fato de que o Bolsa Família vem elegendo de forma acertada os seus beneficiários, na medida em que, como vários estudos têm apontado, a proporção de pobres no Brasil é muito mais elevada entre os pardos e pretos do que entre os brancos”.
Ainda merece destaque a questão da melhoria da auto-estima dos beneficiados, algo subjetivo mas que tem gerado alguns incômodos. No ano passado, o então candidato a senador por Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, chegou a declarar que o Bolsa Família estava retirando mão-de-obra dos canaviais, o que estaria prejudicando os usineiros. Mais recentemente, fazendeiros do interior de Minas Gerais se queixaram de que estariam tendo dificuldades em arrumar trabalhadores rurais. “Ninguém quer ficar mendigando a vida inteira um benefício e falar que prefere a bolsa a uma carteira assinada é fazer pouco caso do trabalhador”, disse o presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg), Vilson Luiz da Silva, em contraposição à afirmação dos ruralistas.
Para Lúcia Modesto, o questionamento à exploração é um dos pontos nodais do Bolsa Família. “O programa tem suscitado, entre seus beneficiários, maior clareza quantos a seus direitos e sua cidadania”. Ela explica que o fato de o trabalhador receber o benefício dá a ele maior segurança para questionar as condições de trabalho e renda a que são submetidos. “O Bolsa Família dá às famílias um contra-ponto para reivindicar salários mais justos e dignos”.
Por possibilitar mudanças importantes nas vidas daqueles que recebem mensalmente o dinheiro é que o programa é bem avaliado por seus favorecidos. Segundo os 4 mil entrevistados pelo DataUFF, 38,8% avaliaram o Bolsa Família como ótimo e 49,9% como bom, ou seja, aprovação de mais de 88% do total, sem contar os que julgaram regular (9,8%). Apenas 1,6% julgaram o programa como ruim e péssimo. “Para mim, a vida melhorou muito depois que pude receber essa ajuda”, relata Cristina. Ela conta que está aguardando a demarcação dos lotes da favela, que está sendo urbanizada, para abrir um pequeno comércio dentro de casa. “Meu desejo é que as coisas continuem melhorando porque assim eu posso devolver o meu cartão para ajudar outras famílias”, finalizou Cristina.
Por Priscila Lobregatte, do www.vermelho.org.br
quarta-feira, fevereiro 21, 2007
Bolsa Família: um passo rumo à cidadania
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