Muitas vezes análise de conjuntura e passado recente são incompatíveis. Ou bem se aprofunda a primeira ou se preserva o segundo. O risco de não se respeitar esse procedimento é terminar produzindo uma autobiografia não autorizada. Um paradoxo que, vez por outra, se apresenta como aposta no cenário político brasileiro.
O inédito mea culpa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, expresso como "Carta aos eleitores do PSDB", publicado na página do partido na internet, é emblemático. Nele se misturam as imposturas de sempre com considerações desprovidas de fundamentação lógica. O que se apresenta como exercício de reflexão não passa de prestidigitação barata. Desnecessário dizer que o texto será reverenciado por articulistas da imprensa como o "grande momento da campanha". Afinal, essa é uma afinidade eletiva que vem de dois mandatos consecutivos. E não será por adversidades eleitorais que lealdades serão rompidas.
FHC inicia sua exposição operando uma cisão conceitual entre moral e ética, cujo objetivo, não duvidem disso, é a auto-absolvição prévia do seu governo. Para ele, "há muita confusão no ar no trato das questões morais. Moral se refere a condutas individuais. Uma coisa é a discussão filosófica sobre a ética, os fins últimos ou o que seja. Outra é a responsabilidade moral". Resta indagar se há uma boa ética de moral duvidosa ou uma boa moral que comporte desvios éticos. Para os propósitos tucanos, essa parece ser uma questão bizantina. Algo que os fins últimos recomendam não aprofundar a contento.
Os desdobramentos da falácia se fazem presentes na distinção entre mensalão e caixa dois. O primeiro, segundo o ex-presidente, deve ser tratado como crime pois "a fonte do dinheiro foi pública", enquanto o segundo é apenas transgressão, "pois a fonte do dinheiro é privada". Eis o exemplo de como o "príncipe dos sociólogos" carrega princípios morais em uma bolsa a tiracolo. FHC fala com convicção sobre algo que nem a CPI nem o Ministério Público conseguiram provar: a origem dos recursos que abasteciam o suposto esquema. A partir daí o que seriam considerações de um homem público dá lugar a sofismas de um militante enraivecido com circunstâncias desfavoráveis ao seu projeto de poder.
O arrazoado do líder dos tucanos comporta construções que beiram o risível. Na tentativa de autocrítica, Cardoso resume a parte que cabe ao PSDB: "É verdade que também somos responsáveis pelo que hoje se vê: a cada dia mais corrupção, a cada dia, menor reação. Erramos, no início, quando quisemos tapar o sol com a peneira no caso do senador Azeredo". Ora, todos sabemos que a USP não comporta modéstias. Então, concedamos a FHC o que é de FHC.
Corrupção sistêmica, anomia e desconexão entre o sentimento da opinião pública e discurso eleitoral não são produtos do atual governo. E o ex-presidente bem sabe disso.
O erro do PSDB não foi querer tapar o sol com a peneira. Mas peneirar o sol desde o primeiro mandato para facilitar o sucateamento do setor produtivo, abrindo as fronteiras à pilhagem internacional. Para tanto, não hesitou em extinguir por decreto a Comissão Especial de Investigação, instituída no governo Itamar Franco, que tinha como objetivo combater a corrupção. Esse "erro" o então presidente Fernando Henrique cometeu em 1995. A banca não lhe negou aplausos e muito menos os articulistas elogios. A Controladoria Geral da União (CGU), criada no segundo mandato, era tão rosa como as pastas que continham doações ilegais de banqueiros para a base de sustentação do governo. Do Sivam à compra de votos para sua reeleição, FHC contou com dupla blindagem: ampla base congressual e boas relações com os proprietários de jornais e emissoras de televisão. Com ela, seu governo bloqueou todas as tentativas de instalação de CPI e pôde costurar negócios no "limite da irresponsabilidade".
O jornalista Franklin Martins, em entrevista à revista Caros Amigos, é categórico: "Eu não tenho dúvidas de que no processo de privatização do governo de Fernando Henrique houve coisas que se tivessem vindo à tona teriam sido extremamente desgastantes para ele. Não acredito que um processo que moveu US$80 bilhões não teve irrigação por baixo". É bom lembrar que o termo operação-abafa é um legado tucano ao vocabulário político brasileiro.
Quando afirma que "nosso candidato à Presidência tem as mãos limpas. Tem história de seriedade. Por que não bradar isso com força?", Cardoso sabe que o motivo do grito parado no ar é a assepsia do chuchu ser garantida pelo sufocamento de 69 pedidos de instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito.
Mas façamos justiça ao ex-presidente. Nenhum outro usou tanto o orçamento como peça essencial para a composição de eventuais maiorias parlamentares em votações delicadas para o governo. Fato facilmente comprovável pela leitura dos jornais diários em seus dois mandatos. Nunca, no patrimonialismo, barganhas fisiológicas e terrorismo eleitoral foram usados com tamanha destreza como naquela época.
Sem planos estratégicos de médio prazo, assinamos sem disfarce uma inserção subalterna no cenário internacional. Já havíamos sido "subdesenvolvidos", "periféricos", "dependentes", "terceiro mundo", "emergentes". Com o governo neoliberal de FHC, tal como os juros, nos tornamos um "país flutuante". Um cassino administrado por um gerente poliglota com o apoio de um player que bancou a mesa do Banco Central.
É essa a biografia que emerge quando FHC se põe a deitar falação sobre o futuro do PSDB. A verdade de certos políticos só vem à tona quando o mea culpa é sincero. Ainda não foi dessa vez.
(Gilson Caroni Filho, professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso - Facha, no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil, do Observatório da Imprensa e do La Insignia.)
domingo, setembro 10, 2006
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Um comentário:
ahahahahahahaha!
ótima comparação!
não consegui ver o youtube, mas vi a notícia na tv! você esqueceu de dizer que, no caso, o tse é representado pelo goleiro, que deveria estar lá pra impedir o gol mas acobertou o gandula espertinho... :p
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