segunda-feira, setembro 04, 2006

A anatomia da inveja

(Mauro Santayanna, para a Agência Carta Maior)

Em "Os velhos marinheiros", o clássico da literatura picaresca brasileira, Jorge Amado narra uma partida de pôquer em que o capitão Vasco Moscoso de Aragão depena o adversário. O perdedor procura insultar o ganhador de todas as formas - e um terceiro jogador observa: "inveja mata, seu Chico, inveja mata".

Há alguns meses o médico Adib Jatene, senhor dos mistérios do coração, órgão em que se presume alojar a alma dos homens, dizia a mesma coisa que disse o personagem de Jorge. A competitividade, o afã de superar os demais, a inveja do êxito alheio, são os maiores aliados da morte por infarto. Provavelmente sejam também de outras doenças fatais.

O ex-presidente Fernando Henrique deve consultar já o doutor Jatene. As suas mais recentes declarações sobre Lula, a quase apoplexia com que, no encontro com os donos do poder econômico, se referiu ao Chefe de Estado (inveja mata: trata-se de um operário na chefia do Estado) mostram que o festejado intelectual está precisando de acompanhamento cardiológico. E não fez melhor o antigo presidente, quando falou em Macunaíma. Lula não tem o perfil do anti-herói de Mário de Andrade.

O ex-presidente é homem vitorioso. Não tem por que invejar o êxito de ninguém, porque foi brindado por todos os êxitos: na cátedra, na literatura sociológica, na presença no Senado e na Presidência da República. Nunca se atrapalhou com o uso dos talheres nos salões do mundo. Sabe perfeitamente como servir-se de chá no Palácio de Buckingham e conhece as anedotas que fazem Clinton divertir-se, embora, com precavida elegância, evite as que falam de charutos. Lula, para a sua razão aristocrática, é um brega. A sua missão histórica deveria limitar-se à liderança sindical, como fez George Meany, que dominou o sindicalismo norte-americano por décadas. Lula devia trabalhar para a conciliação de classes e se satisfazer em apenas reivindicar - e sem greves, como fazia Meany - participação modesta dos trabalhadores na prosperidade do capitalismo em geral. Mas Lula foi atrevido. Fundou um partido político, liderou intelectuais (alguns com muito mais estofo do que sua ex-excelência) e acabou chegando ao Palácio do Planalto. Tratou-se, como pensa o grande sociólogo, de um desaforo de pobre.

Fernando Henrique não tem por que invejar ninguém – mas se sente incomodado fora do poder. Há pessoas que se sentem predestinadas para o mando e se ofendem quando o perdem. Falta-lhes aquela consciência de efemeridade de todas as coisas da vida – e da própria vida. O poder político é uma concessão da vontade popular, e a vontade popular nem sempre é ungida daquele tipo de sabedoria que lhe reclama o soberbo professor.

Podemos entender o direito de espernear dos tucanos. A cada dia seu candidato voa mais baixo apesar da orquestração dos ataques por parte dos outros candidatos, todos aliados "in pectore" do ex-governador de São Paulo. Mas é muito divertido – e o vocábulo é este mesmo – ouvir o Sr. Fernando Henrique falar em moralidade pública, e cobrar do presidente medidas contra os corruptos. Onde se encontrava Fernando Henrique quando seu governo beneficiou banqueiros com as inside informations do Banco Central? Em que galáxia passava férias, quando o Banco Central salvou os bancos Marka e Fontecidam, com o prejuízo de bilhões para o povo brasileiro? Por que não permitiu que se formassem várias comissões parlamentares de inquérito, que foram requeridas contra seu governo, como a do sistema financeiro e a da compra de votos para a emenda da reeleição?

O Sr. Geraldo Alckmin também tem falado muito em moralidade pública, mas ainda não explicou a solidariedade que prestou aos sonegadores e fraudulentos importadores da Daslu, nem os estranhos negócios de publicidade da Caixa Econômica de São Paulo. E o dever de cortesia nos impede de tratar de outros assuntos constrangedores.

O problema é que o país está crescendo, embora lentamente. Pela primeira vez, na história da República, as pessoas vêem os preços reais de produtos essenciais para a vida caírem nos supermercados. Pela primeira vez, em nossa história, engravatados são algemados e colocados no camburão da polícia. Não adianta o desespero: o povo já parece ter feito a escolha. Os formadores de opinião, os cientistas políticos e os clarividentes podem prever o que quiserem, mas só se houver um tsunami no Rio São Francisco ou a Mantiqueira se mover para a Patagônia, será provável a derrota de Lula.

Fernando Henrique está agora incendiário. Mao-tsé-tung dizia que quando a pradaria está seca, basta atear-lhe fogo. Fernando Henrique está pregando que se acenda fogo ao palheiro. Resta saber a que palheiro ele se refere.

O dinheiro do FAT

É estranho o esforço que parte da imprensa faz para desmoralizar os trabalhadores da Volkswagen e reclamar do governo que ajude a empresa a "modernizar-se" e a concorrer com a China. A empresa pediu 500 milhões ao BNDES a fim de instalar novos robôs. O dinheiro do BNDES é do Fundo de Amparo ao Trabalhador, ou seja, dos próprios trabalhadores. O governo se nega a usar dinheiro que pertence aos trabalhadores a fim de que sejam demitidas as pessoas. Se a razão e a justiça tivessem lugar em nosso tempo, seria o caso de a Volkswagen usar o dinheiro do FAT para reciclar seus trabalhadores ou, melhor ainda, manter-lhes o emprego e o salário, reduzindo a carga semanal de trabalho. O uso do dinheiro do FAT para reorganizar empresas com a demissão de milhares e milhares de trabalhadores era normal no governo passado. Foi com esse dinheiro que os privatizadores compraram as empresas estatais. Com esse dinheiro, muitas das novas empresas demitiram sumariamente os trabalhadores brasileiros e importaram trabalhadores estrangeiros.

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