quinta-feira, junho 22, 2006

O Estado precisa se antecipar à fome

A verdadeira dimensão da insegurança alimentar brasileira ganhou contornos científicos irrefutáveis em recente pesquisa do IBGE, que, pela primeira vez, quantificou o problema em escala nacional. Embora incorporado pelo programa Fome Zero desde o seu início, só agora o conceito de insegurança alimentar se integra oficialmente ao instrumental técnico do país — instrumental este desenvolvido na década de 80, nos EUA.

Os resultados colhidos pelo IBGE, ao contrário do que muitos apregoam, mostram que o presidente Lula tinha razão: o Brasil precisa mesmo dar prioridade ao combate à fome por meio de um guarda-chuva amplo de ações e políticas voltadas para a segurança alimentar e nutricional de sua população. A insegurança alimentar não assombra apenas habitantes pobres de países periféricos. Ela arrebata também segmentos das sociedades ricas, graças a um ardiloso hábito de consumo que ataca duplamente o metabolismo humano: engorda mas não alimenta.

Também presente em nossa realidade, essa dissimulação levou alguns, de forma precipitada, a desqualificar o programa Fome Zero, cujos critérios a nova pesquisa do IBGE reafirma e redime. O que ela mostra, infelizmente, é que o desafio explícito da insegurança alimentar ainda atinge 1/4 dos lares brasileiros. Ou seja, cerca de 10 milhões de famílias, 40 milhões de pessoas sofriam, em 2004 — ano de coleta dos dados — de algum grau de restrição alimentar, de moderado a grave. Destes, 14 milhões de pessoas, ou seja, 6,5% do total, experimentavam privação alimentar grave, índice que é 40% superior ao de Caracas em 2000, no auge da crise de abastecimento, quando a economia venezuelana quase foi destruída.

A privação alimentar é particularmente grave nas regiões Norte e Nordeste brasileiras, como já é sabido, e especialmente acentuada em grupos familiares integrados por crianças, o que é dramático do ponto de vista do nosso futuro. De acordo com o IBGE, metade das crianças e jovens brasileiros viviam em 2004 em residências submetidas a um cotidiano de insegurança alimentar. A boa notícia é que hoje há maior espaço para se promover e implantar programas sociais com a profundidade e a abrangência cobradas pela realidade.

A essência desse conceito — que não pode ser confundido com a idéia de fome — encontrou sua tradução mais simples e direta na forma como o presidente Lula se referiu a ela desde a campanha eleitoral de 2002: o direito de todo brasileiro ter pelo menos três refeições todos os dias. Portanto, é uma fita métrica mais rigorosa que dimensiona tanto aqueles grupos efetivamente sujeitos à fome como os que vivem submetidos ao espectro de sua ameaça.

É preciso que o Estado se antecipe à fome, amparando núcleos e segmentos antes que sejam engolidos pela sua dinâmica — o que requer uma ação ampla de natureza ao mesmo tempo regeneradora, preventiva e educativa . É o que o governo federal tem feito por meio de vários programas para melhorar o acesso das famílias ao alimento, sendo o principal deles a transferência de renda promovida pelo Bolsa Família, que já beneficia cerca de 9 milhões de lares.

O fato mais inquietante constatado pelo IBGE, porém, é que 2/3 dos domicílios já incorporados ao Bolsa Família, até setembro de 2004, apresentavam insegurança alimentar. Tal diagnóstico envia um duplo sinal ao Estado e à sociedade. Primeiro, o programa está realmente chegando a quem mais precisa; segundo, as transferências, por si só, ainda não foram suficientes para garantir uma alimentação digna e regular. Exatamente por isso é necessário avançar na implementação do Fome Zero, até a construção definitiva de uma política de proteção social que englobe a segurança alimentar. Isso inclui a integração com diversas políticas que configuram as portas de saída e o desenvolvimento das localidades, por meio das quais os excluídos serão protagonistas de sua própria emancipação.

Os dados do IBGE deixam claro, ainda, a correlação estreita entre baixa renda e insegurança alimentar no Brasil. Infere-se daí que a prioridade social do governo Lula já trouxe resultados significativos à sociedade. A redução da miséria verificada entre 2002 e 2004 — quando cerca de 3 milhões de pessoas superaram a linha de pobreza graças ao aumento do emprego e às políticas de transferências de renda — certamente evitou que estatísticas de insegurança alimentar mais dramáticas fossem colhidas em 2004.

É possível ir além. A adoção de critérios, conceitos e paradigmas amplos de programas sociais, como o de segurança alimentar, é apenas o primeiro passo para isso.


(
José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO América Latina; Maya Takagi, pesquisadora da Embrapa; e Mauro del Grossi, professor da Universidade de Brasília, n'O Globo de 22/06/2006. Grifos meus.)

Um comentário:

Clara Arreguy disse...

tinha muitos dias que eu não acessava o blog, por falta de tempo, mesmo, e ele continua ótimo, sério, oportuno. Sigam em frente, amigos, contribuindo para dar outras vozes aos assuntos dominados pela mídia da opinião única.