domingo, maio 14, 2006

Chico vota em Lula de novo

Chico diz que vota em Lula de novo
(Fernando Barros e Silva, para a Folha de São Paulo)

Decepcionado com o PT, Chico critica oposição que trata Lula como um "vagabundo que deve voltar à senzala"

"É duro jogar na defesa." Foi esse o comentário bem-humorado que Chico Buarque fez assim que terminou a primeira parte de uma entrevista feita em dois tempos, no domingo à noite e na segunda-feira à tarde, no seu apartamento no Leblon. O compositor se referia à defesa que acabara de fazer do governo Lula.

Mas Chico Buarque não sabe, não gosta e não joga na defesa. Como no futebol, que, perto de completar 62 anos, em junho próximo, continua praticando três vezes por semana, Chico partiu logo para o ataque. Disse que o escândalo do mensalão o deixou, sim, decepcionado com o governo e é desastroso para o PT. Mas disse com ênfase ainda maior que as críticas da oposição e de parte da mídia a Lula exorbitaram tanto no tom quanto no conteúdo e são, por isso, inaceitáveis.

Mais ainda, Chico vê o recrudescimento do preconceito de classe contra o presidente: "Como se fosse uma concessão, deixaram o Lula assumir. 'Agora sai já daí, vagabundo!'. É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu esse luxo de ocupar a Casa Grande", diz Chico.

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Folha - No fim de 2004, em entrevista à Folha, você via uma onda de ódio aos pobres e de ódio a Lula no país. Entre aquele diagnóstico e a situação de hoje houve a crise do mensalão. Você está decepcionado? O que mudou no governo Lula?
Chico Buarque - É claro que esse escândalo abalou o governo, abalou quem votou no Lula, abalou sobretudo o PT. Para o partido o escândalo é desastroso. Espero que disso tudo possa surgir um partido mais correto, menos arrogante. No fundo, sempre existiu no PT a idéia de que você ou é petista ou é um calhorda. Um pouco como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro [risos].
Agora, a crítica que se faz ao PT erra a mão. Não só ao PT, mas principalmente ao Lula. Quando a oposição vem dizer que se trata do governo mais corrupto da história do Brasil, é preciso dizer "espera aí". Quando aquele senador tucano canastrão vai para a tribuna do Senado dizer que vai bater no Lula, dar porrada, quando chamam o Lula de vagabundo, de ignorante, aí estão errando muito a mão. Governo mais corrupto da história? Onde está o corruptômetro? É preciso investigar. Tem que punir, sim. Mas vamos entender melhor as coisas.

Folha - Como assim?
Chico - Pergunte a qualquer pequeno empresário como faz para levar adiante seu negócio. Ele é tentado o tempo todo a molhar a mão do fiscal para não se estrepar. O mesmo vale para o guarda de trânsito. E assim sucessivamente. A gente sabe que a corrupção no Brasil está em toda a parte. E vem agora esse pessoal do PFL, justamente eles, fazer cara de ofendido, de indignado. Não vão me comover. Eles fazem o papel da oposição, está certo. O PT também fez o "Fora FHC", uma besteira.
Mas o preconceito de classe contra o Lula continua existindo - e em graus até mais elevados. A maneira como ele é insultado eu nunca vi igual. Acaba inclusive sendo contraproducente. O sujeito mais humilde ouve e pensa: "Que história é essa de burro!? De ignorante!? De imbecil!?". Não me lembro de ninguém falar coisas assim antes, nem com o Collor. Vagabundo! Ladrão! Assassino! - até assassino eu já ouvi.
Fizeram o diabo para impedir que o Lula fosse presidente. Inventaram plebiscito, mudaram a duração do mandato, criaram a reeleição. Finalmente, como se fosse uma concessão, deixaram o Lula assumir. "Agora sai já daí, vagabundo!" É como se estivessem despachando um empregado a quem se permitiu esse luxo de ocupar a Casa Grande. "Agora volta pra senzala!" Eu não gostaria que fosse assim.

Folha - Você acredita que o Lula seja de fato visto como uma ameaça pelos mais ricos?
Chico - A economia, na verdade, não vai mudar se o presidente for um tucano. A coisa está tão atada que honestamente não vejo muita diferença entre um próximo governo Lula e um governo da oposição. Mas o país deu um passo importante elegendo o Lula. Considero deseducativo o discurso em voga: "Tão cedo esse caras não voltam, eles não sabem fazer, não são preparados, não são poliglotas". Acho tudo isso muito grave.

Folha - Você vai votar no Lula?
Chico - Hoje eu voto no Lula. Vou votar no Alckmin? Não vou. Acredito que, apesar de a economia estar atada como está, ainda há uma margem para investir no social que o Lula tem mais condições de atender. Vai ficar devendo, claro. Já está devendo. Precisa ser cobrado. Ele dizia isso: "Quero ser cobrado, vocês precisam me cobrar, não quero ficar lá cercado de puxa-sacos". Ouvi isso dele na última vez que o vi, antes de ele tomar posse, num encontro aqui no Rio.

Folha - Vários artistas andaram criticando o PT, o governo e Lula. O meio artístico, ao que parece, não vai mais embarcar no "Lula lá".
Chico - Pelo que eu ando lendo, a grande maioria dos artistas está contra o Lula. Tenho a missão de contrabalançar um pouco isso [risos]. Há também entre os artistas um pouco daquela competição: quem vai falar mais mal do presidente? Mas concordo em parte com o Caetano. Em parte.
Quando ele fala que as pessoas do atual governo se cercam da aura de esquerda para justificar seus atos e reivindicar para si uma posição superior à dos demais, tudo isso também vale para o governo anterior. Os tucanos costumam carregar essa aura de esquerda com muito zelo. Volta e meia os vemos dizendo que foram contra a ditadura, que são intelectuais de esquerda. Fernando Henrique foi eleito como candidato de centro-esquerda. Na época a vice entregue ao PFL parecia algo estranho. Depois se provou que não era.
As pessoas se servem do passado de esquerda como se fosse um título, um adorno. Na prática política essa identidade não funciona mais. Mas não funciona não só porque as pessoas viraram casaca. A história levou para isso. Levou o PSDB a se tornar o que é e obrigou o PT a abdicar de qualquer veleidade socialista ou revolucionária.

Folha - O que você acha do PSOL e dessa turma que deixou o PT fazendo críticas pela esquerda?
Chico - Percebo nesses grupos um rancor que é próprio dos ex: ex-petista, ex-comunista, ex-tudo. Não gosto disso, dessa gente que está muito próxima do fanatismo, que parece pertencer a uma tribo e que quando rompe sai cuspindo fogo. Eleitoralmente, se eles crescerem, vão crescer para cima do PT e eventualmente ajudar o adversário do Lula.

Folha - Como você vê a atuação da mídia no escândalo do mensalão? Tem gente que ainda diz que a mídia criou ou inventou essa crise.
Chico - Não acho que a mídia tenha inventado a crise. Mas a mídia ecoa muito mais o mensalão do que fazia com aquelas histórias do Fernando Henrique, a compra de votos, as privatizações. O Fernando Henrique sempre teve uma defesa sólida na mídia, colunistas chapa-branca dispostos a defendê-lo. O Lula não tem. Pelo contrário, é concurso de porrada para ver quem bate mais.

Folha - O rumo que tomou o Brasil e o mundo o faz se sentir derrotado? A sua geração perdeu?
Chico - É evidente que parte da minha geração que chegou ao poder não lutou a vida inteira para isso. Eu vou dizer: até mesmo pessoas que hoje são execradas publicamente, como o Zé Dirceu...
Não tenho maior simpatia pelo Zé Dirceu, não assinei manifesto em defesa dele, acho que ele errou, que ele tem culpa, sim, por tudo o que aconteceu, mas eu respeito uma pessoa que num determinado momento entregou a sua vida, jogou tudo o que tinha em nome de uma causa, do país.
Como o Zé Dirceu eu poderia citar outros nomes que chegaram ao poder, mas chegaram despidos daquele sonho em nome do qual eles lutaram a vida toda. Quem sabe para chegar ao poder tiveram justamente que se render ao pragmatismo. A pessoa que chega ao poder é um pouco um fantasma daquela que deu a vida por algo que não se realizou.

(...)*

* as partes suprimidas tratavam do novo cd do artista, que apesar de ótimo não tem relação com o tema do blog.

(os grifos são meus)

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