Tratar com lucidez a questão da transposição é o que precisamos para nos posicionar. Achei esta entrevista de um geólogo da Paraíba uma oportunidade ímpar para a reflexão dos prós e contras do debate, sem preconceitos ou torcidas. Confira.
"Os movimentos sociais deveriam integrar a luta no interior do projeto de transposição do Rio S. Francisco e não ser apenas contra". A opinião é do professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Pedro Costa Guedes Vianna (foto à esquerda). Com experiência na área de Gestão dos Recursos Hídricos, o pesquisador, embora reconheça como correta muitas das críticas à transposição, discorda da posição da Articulação do Semi-Árido (ASA) que se opõe frontalmente ao projeto e afirma: "o movimento social que tem força para ocupar terras, pode 'ocupar' ou forçar o acesso às águas".
Para Pedro Vianna, a posição contrária ou favorável ao projeto depende de onde se está no território. Segundo ele, "se estou dentro da zona receptora, sou favorável; se estou fora dela, sou indiferente, e se estou na zona doadora sou contra". Segundo ele, essa posição acaba prevalecendo entre todos, os políticos, os acadêmicos e os religiosos. O pesquisador critica ainda a posição de D. Luiz Flávio Cappio.
Pedro Costa Guedes Vianna possui graduação em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (1980), mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (1994) e doutorado em Geografia (Geografia Física) pela Universidade de São Paulo - USP (2002). Por 19 anos atuou, como geógrafo, na SUDERHSA, organismo de gestão de águas do Estado do Paraná.
Atualmente, é professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia de UFPB e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Água e território.Confira a sua entrevista.
IHU On Line - A transposição do Rio São Francisco dividiu a sociedade brasileira. Essa divisão está presente também na comunidade científica?
Pedro Vianna - Divide sim, e divide muita coisa: divide os partidos políticos, os prefeitos, os intelectuais, os pequenos agricultores, assim como os grandes latifundiários, os artistas, os estudantes. Até a Igreja Católica está dividida. Esta questão é mesmo um "divisor de águas" e de tudo o mais.
IHU On Line - Em linhas gerais, no que consiste a obra da transposição?
Pedro Vianna - Transpor água de uma bacia para outra. O que pode parecer simples, mas não é, pois envolve vencer, entre outras coisas, as forças da natureza, da gravidade e as formas do relevo. Outra questão diz respeito às conseqüências sociais e econômicas. Já os impactos ambientais são inúmeros e difíceis de serem avaliados. Enfim, transpor águas de uma bacia para outra é redesenhar a rede hídrica e redefinir a geografia, principalmente da região que vai receber as "novas" águas em seu território.
IHU On Line - Fala-se em estados "doadores" (MG, BA, AL e SE) e estados "receptores" (PE, PB, RN e CE). Você poderia explicar melhor isso?
Pedro Vianna - É uma analogia com a transfusão de sangue. No Nordeste, se usa a palavra "sangrar" para se denominar o transbordamento de um açude. Nesta nomenclatura se percebe como o sertanejo entende a água; ele a entende como sangue, em outras palavras, isto é, aquilo que dá vida a um corpo. Por outro lado, a doação de sangue é um ato de solidariedade, elevado ao extremo, no qual um se propõe a dividir a vida com o outro, no caso a água.
IHU On Line - A Articulação no Semi-Árido (ASA), que reúne várias organizações, afirma que a transposição é um projeto feito para o agronegócio exportador, por isso taxa a obra de "hidronegócio". Já o governo diz que a obra irá priorizar os pobres da região. Qual é a sua percepção?
Pedro Vianna - Diria que de certa forma ambos têm razão, ou melhor, os movimentos sociais têm toda a razão de ver a obra como algo que vem para aprofundar as diferenças sociais e econômicas entre os grandes proprietários de um lado e os pequenos proprietários e "sem-terras" do outro. Ou seja, a água viria "carimbada" para o agronegócio, o que resulta em um hidronegócio.
Por outro lado, vejo a "priorização dos pobres na região" como intenção de uma parte do governo. Não quero aqui julgar o Governo Federal, mas me parece que os movimentos sociais têm razão em duvidar de promessas do governo. Porém, minha posição é contrária a esta da ASA e algumas organizações, como posto na pergunta. Sou daqueles que acredita que o movimento social que tem força para ocupar terras pode "ocupar" ou forçar o acesso às águas. É uma luta como outra qualquer, em certos aspectos, mas também com especificidades próprias.
Deixar que o projeto seja conduzido apenas pelas elites, e ficar jogando pedra nele é, na minha opinião, uma perda de tempo, recursos e sangue (água). Talvez as organizações populares precisem passar a integrar a luta também no interior do projeto, sem perder a sua independência e a sua vida externa ao próprio projeto. Acho que levar água para onde ela não existe e em quantidade suficiente é importante, e dividi-la é a melhor forma de trazer melhorias na qualidade de vida das populações no semi-árido.
IHU On Line - Ambientalistas e especialistas afirmam que hidrologicamente o São Francisco está anêmico e que um anêmico não pode ser um doador - D. Luiz Cappio tem dito muito isso. Por isso o movimento social - particularmente a ASA - defende a revitalização no lugar da transposição, ou seja, obras que permitam a convivência no semi-árido. O que te parece essa posição?
Pedro Vianna - Não consigo entender a posição de D. Luiz Cappio como cristão. Não imagino que seja correto alguém não ser solidário com o próximo. O São Francisco parece ter água para gerar energia para a maior parte do Nordeste brasileiro, inclusive seu parque industrial. Suas águas tornaram a CHESF e FURNAS no que são hoje, gigantes do setor hidroelétrico. Existe água para irrigar milhares de hectares do "agronegócio" em terras baianas. Há águas em outorgas (direitos de uso de água) legais "especulativas", apenas aguardando o momento certo, para serem "negociadas". Mas não existe água para transpor ao sertão setentrional.
Não temos que cuidar e revitalizar só o Rio São Francisco; temos que fazer isso com todos os nossos rios, nossa imensa rede hídrica. Por que não nos preocupam tanto os Rios Uruguai, Paranapanema e o Paraná? Será preciso lembrar do Cubatão, Tietê, Iguaçú e outros tantos transformados em esgotos a céu aberto, quando passam pelas cidades. A revitalização, dos nossos Rios e aqüíferos é uma tarefa nacional e não deve ser um direito exclusivo dos rios que terão águas transpostas, muito menos exclusivamente do São Francisco.
Existem muitas ações capilares com iniciativa da sociedade (em que o Estado vem a reboque) que são importantes para a convivência com o semi-árido, mas elas não são suficientes, apesar de fundamentais. É preciso encontrar um equilíbrio entre as grandes obras hídricas e as ações capilares. Entre elas, destaco o Programa de "Um Milhão de Cisternas" e as "Barragens Subterrâneas", mas elas têm uma "escala" pontual.
Eu fui criado no discurso de que os grandes açudes do Nordeste eram obras da indústria da seca. Hoje quase todos concordam que, sem os grandes e médios açudes, já parcialmente integrados em rede, não seria possível que o nosso semi-árido fosse o mais habitado no mundo, com algo em torno de 18 milhões de pessoas. Só para dar um exemplo, o que seria de Campina Grande na Paraíba, com seus mais de 400 mil habitantes, sem o açude do Boqueirão? Todas as pessoas da região sabem! Seria inviável. Podem pegar o mapa de todo o sertão nordestino, ligado à toda cidade com mais de 100 mil habitantes: existe sempre um, dois ou mais açudes de grande ou médio porte.
IHU On Line - Muitos dizem que já existe água para onde se deseja transportá-la através da transposição. Isso é uma realidade? O problema está no gerenciamento?
Pedro Vianna - É verdade que falta gerenciamento, em todo o país, de Norte a Sul, este não é um privilégio do Nordeste. Mas dizer que existe água suficiente no semi-árido parece uma piada. Se fosse assim, o semi-árido não seria semi-árido, seria úmido, ou semi-úmido. Então as secas periódicas, a caatinga e demais características da semi-aridez são ilusão de ótica?
IHU On Line - No caso de a obra avançar, quanto de água vai ser retirado de fato do São Francisco, o que isso significa em percentagem e, quando ela chegar ou transitar pelo semi-árido, por quem e para que será ou poderá ser usada esta água?
Pedro Vianna - O volume retirado da bacia do São Francisco seria da ordem de 65 m3/s, ou seja, 65.000 litros por segundo. Com relação à percentagem, há variações. Quem é a favor diz que representa entre 3,5% e 5,0%. Já os que são contra afirmam que isso representa entre 25% e 27%. Essa variação existe porque os que são a favor calculam sobre as vazões na foz, de segurança hídrica ou ecológica (a definida pelo IBAMA). Já os contrários contam todas as outorgas possíveis, inclusive as especulativas, e as calculam sobre a disponibilidade ditada pelo Comitê de Bacia do São Francisco.
A segunda parte da pergunta toca no ponto principal. Neste aspecto se especula muito. Creio que as cidades, como Campina Grande, Fortaleza etc., deverão, por sua importância, receber prioridade, já que a lei 9433/97 de Recursos Hídricos é clara: a prioridade é para o abastecimento humano e dessedentação de animais, nesta ordem. Porém, ninguém duvida dos interesses dos que estão no curso das águas em receber algum privilégio ou alguma compensação. Para deixar bem clara minha posição, vai usar a água quem estiver mais organizado, quem estiver localizado melhor em relação ao traçado dos canais, e quem tiver mais poder.
A sociedade organizada precisa ter em mente que é melhor lutar por um sertão com água transposta do que lutar por um pedaço de terra seca, sem vida. Aqui na Paraíba já temos um caso de um assentamento, que é produto de uma ocupação que foi feita por causa de um canal de transposição. Refiro-me ao Canal da Redenção, que transporta água da barragem de Coremas/Mãe D´Água para as várzeas de Souza. São 37 Km de puro conflito potencial e real. Dizemos aqui em nosso grupo de Pesquisa - GEPAT (Grupo de Estudos e Pesquisa em Água e território) -, que este é um laboratório de ensaio para os conflitos que deverão vir com os ramais da transposição de águas do são Francisco.
IHU On Line - O Comitê de Bacia do São Francisco tem sido ouvido? Como está constituído e o que tem defendido e porque Governo Federal através da Agência Nacional das Águas (ANA) e do IBAMA atropelou o Comitê liberando as obras?
Pedro Vianna - O Comitê fez seu papel "corporativista" e político, defende os seus interesses. Só para ilustrar, num determinado momento a presidência do Comitê era ocupada pelo secretário de Recursos Hídricos da Bahia, e o vice era o de Minas Gerais. Vejam bem naquele momento tínhamos PSDB em Minas, PFL na Bahia e o PT no Governo Federal, com Ciro Gomes, do Ceará, no Ministério da Integração, à frente do projeto.
Mais do que defender os interesses de seus territórios alguns atores políticos e econômicos, a meu ver, buscaram inviabilizar o possível desenvolvimento de zonas "concorrentes", localizadas mais ao Norte e próximas de portos com menor distância dos mercados consumidores na Europa e América do Norte.
Já o Governo Federal, ferrenho defensor do Projeto sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, convenceu a ANA e o IBAMA. Por outro lado, parece que Lula colocou o projeto como uma prioridade da própria presidência. Porém, faltou vontade de diálogo, em ambas as partes.
IHU On Line - Qual é o papel das hidroelétricas (Furnas e Chesf etc.) no sistema de gestão das águas do S. Francisco, o que dizem os seus técnicos sobre a transposição?
Pedro Vianna - O setor elétrico se comporta como dono dos rios no Brasil, e isso explica porque nossa matriz energética é mais de 70% baseada na hidroeletricidade. O poder do setor elétrico vem de sua importância, e, a meu ver, seus interesses mais importantes estão preservados. Se não fosse assim, nem se falaria mais no assunto.
IHU On Line - Como você interpreta a decisão do Banco Mundial em seus estudos ter se manifestado contrário à transposição?
Pedro Vianna - Como quase tudo que o Banco Mundial faz por aqui. Se for bom para o país, eles são contra; se interessa aos seus financiadores, eles aportam recursos, técnicos e lobbies internacionais e até internos. É bom lembrar que o Banco Mundial teve um papel importante na formulação da legislação brasileira de recursos hídricos, no desenho e formato das agências reguladoras e no pagamento de inúmeros "consultores", para que eles rezassem a cartilha do "hidroliberalismo".
IHU On Line - Falando em Banco Mundial, quem banca os custos da obra da transposição?
Pedro Vianna - O Governo Federal, com dinheiro de nossos impostos, ou seja, com nosso trabalho e suor.
IHU On Line - Estando aí no Nordeste, onde você identifica as principais forças de resistência à transposição? A Igreja é a principal delas? Mas a Igreja também não está dividida?
Pedro Vianna - As resistências vêm dos "territórios" que possuem a água. Ninguém quer perder a "commodity", "a mercadoria", do momento. Os padres do sertão defendem as suas paróquias, os seus fiéis, e rezam pela chegada da água. Já os da bacia do São Francisco querem ver o rio belo, limpo e usar o máximo possível deles; são estes os interesses de seus paroquianos. Sei, por exemplo, que o Arcebispo da Paraíba, é a favor da transposição, o que me parece tão lógico como a oposição de D. Luiz Flávio Cappio.
IHU On Line - Em relação aos políticos nordestinos como eles têm reagido?
Pedro Vianna - Da mesma forma, os que têm interesses no sertão são amplamente favoráveis e os que têm seus redutos no litoral úmido, indiferentes. Assim o PT e PFL da Bahia coincidem no repúdio ao Projeto. Estes mesmos partidos na Paraíba são favoráveis.
IHU On Line - Por que você acha que o Lula insiste tanto nesse mega-projeto que vem sendo duramente criticado? Você interpreta que tem alguma coisa de Antonio Conselheiro em Lula ou se trata apenas de uma obra calculada?
Pedro Vianna - Nunca tinha pensado pelo viés de que Lula se assemelha ao Conselheiro, mas não parece absurda a comparação. Até pela forte oposição da maioria da hierarquia eclesiástica. Acho também que Lula quer deixar uma grande obra ao país, e, sem dúvida, esta é uma grande oportunidade, pois todo político quer ser lembrado por um grande monumento, e esta pode ser sua chance. É bom não esquecer que Lula nasceu numa das zonas que receberá aporte de água.
IHU On Line - Qual é a sua impressão do sentimento popular em relação à transposição?
Pedro Vianna - Depende do território onde estou. Dentro da zona receptora, é favorável; fora dela é indiferente; na zona doadora: contra; no meio intelectual e científico: contra; no Governo Federal: a favor; e na oposição: contra. O fator que em minha opinião é determinante é o território.
IHU On Line - Uma última questão. Existem outras obras de transposições no Brasil. Onde estão e como funcionam?
Pedro Vianna - Existem, sim, inúmeras, aqui mesmo no Nordeste. Porém, as mais importantes estão aí no Sul. Em São Paulo, são transladados 31m³/s entre os sistemas Cantareia-Piracibaba. Já no Rio de Janeiro o volume é maior, sendo transpostos entre 119 m³/s e 160 m³/s da bacia do Paraíba do Sul para a bacia do Guandu, e não percebo nenhuma manifestação, de quem quer que seja, contra estas ações que há muito estão em funcionamento. É certo que as megas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, não resistem um só dia sem esta "transfusão". Parece aquela história: façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço.
Fonte: http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=6457
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